Apenas o grito a assistir à sua extinção.

Thursday, May 26, 2016

A ilusão do "Eu"

Onde há actividade do «eu», a meditação não é possível. É muito importante compreender isto, não verbalmente mas de facto. Meditação é um processo de esvaziamento da mente de toda a actividade do «eu». Se não compreendermos a actividade do «eu», a nossa meditação apenas leva à ilusão, ao auto-engano, a mais distorção. Portanto, para se entender o que é meditação temos de compreender a actividade do «eu».
O «eu« tem tido milhares de experiencias mundanas, sensuais, ou intelectuais, mas está farto delas porque não têm qualquer significado. O desejo de ter experiências mais «expansivas», mais «vastas», transcendentes, faz parte do «eu». Quando se têm tais experiências, ou visões, temos de ser capazes de as reconhecer, mas se as reconhecemos elas deixam de ser novas, passam a ser projecções do nosso passado, do nosso condicionamento, nas quais a mente se entretém julgando que elas são algo de novo. Não estejam de acordo, mas vejam a verdade do que está a ser dito, e isso passará a fazer parte de cada um de vós.
Um dos desejos fortes da mente, do «eu», é mudar o que é para o que «deveria ser». Ela não sabe o que fazer com o que é porque não é capaz de o resolver e, portanto, projecta uma ideia do que «deveria ser», que é um ideal. Esta projecção é a antítese de o que é, originando portanto, um conflito entre o que é e o que «deveria ser». Esse mesmo conflito é o sangue e o respirar do «eu».
Uma outra actividade do «eu» é a vontade – a vontade de vir a ser, a vontade de mudar. A vontade é uma forma de resistência, na qual fomos educados desde a infância. A vontade torna-se extraordinariamente importante para nós, economicamente, socialmente e religiosamente. A vontade é uma forma de ambição, e dela nasce o desejo de controle – controlar um pensamento por outro pensamento, controlar uma actividade do pensamento por outra actividade do pensamento. «Devo controlar o meu desejo»: o «eu», como «observador». O observador é o passado, com todo o conhecimento acumulado, experiencias e memórias. Assim, o «eu» separa-se a si próprio do «tu» (o observado) como sendo o observador. «Nós» e «eles». Enquanto as actividades do eu – enquanto o «eu» como observador, como controlador, como vontade, como o «eu» que deseja experiências – existirem, a meditação torna-se um meio de auto-hipnose, uma fuga da existência diária de todas as desgraças e problemas. Enquanto existirem essas actividades, tem de haver ilusão e engano. Temos de ver a realidade, não verbalmente mas de facto, de que uma pessoa que investiga a meditação, que quer ver o que acontece, tem de compreender todas as actividades do «eu».
Meditar é esvaziar a mente da actividade do «eu». E não podemos fazê-lo através de qualquer prática, de qualquer método, ou pedindo: «Diz-me o que hei-de fazer.» Portanto, se estamos realmente interessados neste assunto, temos de descobrir por nós próprios a actividade do nosso «eu« - os hábitos, as afirmações verbais, os gestos, as ilusões, o sentimento de culpa que cultivamos e mantemos como se fosse uma coisa preciosa, em vez de nos desfazermos dele, os castigos – todas as actividades do «eu«. E isso exige grande atenção.
Ora, o que é ter atenção? Atenção implica uma observação em que não há qualquer escolha; há apenas observar, sem interpretar, traduzir, ou distorcer. E isto não acontece enquanto houver um observador que está a tentar ter atenção. Será que podemos estar atentos, de tal modo a que nessa atenção só haja observação e não «observador»?
Reparem nisto. Ouviram ou leram esta afirmação: a atenção é um estado da mente no qual não há o observador que escolhe. Imediatamente queremos pôr isso em prática, em acção. Perguntamos: «O que faço? Como é que vou estar atento sem o observador ?» Queremos uma actividade imediata – o que quer dizer que não escutámos verdadeiramente essa afirmação. Estamos mais interessados em pôr a afirmação em acção do que escutar o que a afirmação nos diz. É como olhar uma flor e cheirá-la. A flor está lá, a sua beleza, a cor, o seu encanto. Olhamos para ela, colhemo-la e começamos a desfolhá-la. E assim procedemos quando escutamos a afirmação de que na atenção não há observador, porque se o observador está presente, então temos o problema da escolha, do conflito. Ouvimos o que foi dito e a reacção imediata da mente é: «Como é que vou fazer isso?». Assim, estamos mais preocupados com a acção, do como vamos fazer, do que como escutar o que realmente se está a dizer. Se o escutássemos de um modo completo, então respiramos o seu perfume, a sua verdade. E esse perfume, essa verdade, é que actua, não o «eu» que está lutando por agir correctamente. Perceberam bem isto?
Portanto, para se encontrar a beleza e a profundidade da meditação, temos de investigar as actividades do «eu», o qual é criado pelo tempo. Assim, temos de compreender o tempo.
Não façam nada acerca disso, escutem apenas. Descubram se é verdadeiro ou falso. Observem apenas. Escutem com o coração, não com uma mente limitada.
Tempo é movimento, tanto fisicamente como psicologicamente. Fisicamente, para nos deslocarmos daqui para ali precisamos de tempo. Psicologicamente, o movimento do tempo é para mudar o que é no «que deveria ser». Estamos a dizer que o pensamento é o movimento do tempo. Isto porque ele é a resposta dos conhecimentos adquiridos, é a experiencia, é a memória, que é tempo. Portanto, o pensamento nunca pode estar sereno. O pensamento nunca pode ser novo. O pensamento nunca pode originar liberdade.
Quando estamos conscientes do movimento do «eu» em todas as suas actividades – ambições, busca de realização pessoal, relacionamento – disso surge uma mente que está em completa quietude. Não é o pensamento que está quieto – percebem a diferença? A maior parte das pessoas tenta controlar os seus pensamentos, na esperança de trazer serenidade à mente. Conheci muitas pessoas que praticaram durante anos tentando controlar os pensamentos, esperando conseguir uma mente realmente aquietada. Mas eles não viam que o pensamento é um movimento. Podemos dividir esse movimento em o observador e o observado, aquele que pensa e o pensamento, o controlador e o controlado, mas isso continua a ser movimento. E o pensamento nunca pode estar quieto: se está quieto, morre, portanto, ele não tem possibilidade de estar quieto.
Se caminhamos bem fundo em tudo isto, em nós próprios, então veremos que a mente se torna completamente serena – não forçada a isso, não controlada, não hipnotizada. E ela terá de aquietar-se porque é somente nessa quietude que algo novo e irreconhecível pode acontecer. Se forço a minha mente a estar quieta através de vários truques e práticas, de choques, então isso é o aquietar-se de uma mente que lutou com o pensamento, que controlou o pensamento, que o reprimiu. Isso é totalmente diferente de uma mente que compreendeu a actividade do «eu», que viu o movimento do pensamento como sendo tempo. A própria atenção a todo esse movimento cria a qualidade da mente que está em total serenidade, e na qual algo absolutamente novo pode surgir.
A meditação é o esvaziar da mente de toda a actividade do «eu». Levará isso tempo? Poderá o esvaziamento, ou antes – é melhor não usar a palavra esvaziamento, ou antes – é melhor não usar a palavra esvaziamento, porque esta pode assustar-vos – poderá este processo do «eu» extinguir-se através do tempo, através dos dias e dos anos? Ou poderá ele cessar instantaneamente? Será isto possível? Tudo isto faz parte da meditação. Quando dizemos para nós mesmos: Ver-me-ei livre do «eu» gradualmente, isso pertence ao nosso condicionamento, e, entretanto, vamo-nos divertindo. Quando usamos a palavra gradualmente, isso envolve tempo e durante esse período de tempo fazemos aquilo que nos dá mais satisfação – todos os prazeres, todos os sentimentos de culpa que acarinhamos e sustentamos, toda a ansiedade que nos dá um certo sentido de viver. E para nos livrarmos de tudo isso, afirmamos: «É preciso tempo». Esta atitude faz parte da nossa cultura e do nosso condicionamento da evolução. Será que demorará tempo fazer cessar psicologicamente as actividades do «eu»? Ou não será preciso tempo, mas sim a libertação de uma nova espécie de energia que porá tudo isso de lado instantaneamente?
Será que a mente vê de facto a falsidade da afirmação de que é preciso tempo para dissolver as actividades do «eu»? Será que vejo claramente essa falsidade? Ou intelectualmente, penso que não pode ser desse modo, e continuo a pensar assim? Se eu vejo de facto a falsidade disso, então acabou-se, não é? O tempo não entra neste processo. O tempo apenas é necessário na análise, quando há uma inspecção ou estudo de cada pedaço que constitui o «eu». Quando vejo todo o movimento disto como sendo pensamento, isso não tem validade, embora o ser humano o venha aceitando como inevitável. E porque a mente vê essa falsidade, há um terminar.
Não caminhamos até demasiado perto da beira de um precipício, a menos que sejamos mentalmente desequilibrados, para depois nos despenharmos; se formos saudáveis permanecemos longe desse precipício. O movimento para nos afastarmos não exige tempo, é uma acção imediata porque vemos o que nos aconteceria se continuássemos em frente. Do mesmo modo, se percebermos a falsidade de todo o movimento do pensamento, da análise, da aceitação do tempo, etc., então há uma acção instantânea do pensamento, como sendo «eu», pondo fim a si mesmo.
Uma vida religiosa é uma vida de meditação, na qual as actividades do «eu» não estão presentes. E é possível neste mundo, no dia-a-dia viver uma vida assim. Isto é, pode-se viver uma vida em que haja vigilância constante, atenção sem esforço, e uma mente muito atenta ao movimento do «eu». E essa atenção é uma atenção a partir do silêncio, não a partir de uma conclusão. Tendo a mente observado as actividades do «eu» e visto a falsidade do que observou, ela torna-se extraordinariamente sensível e silenciosa. E, partindo desse silêncio, ela actua na vida diária.
Compreenderam o que foi dito? Partilhámos isso juntos? Porque se trata da vossa vida, não da minha. É a vossa existência de dor, de tragédia, de confusão, de sentimentos de culpa, de prémios e de castigos. Tudo isso é a vossa vida. Se houver serenidade em vós, tereis de clarificar o que se passa convosco. Ler um livro, seguir um mestre, ouvir alguém, não resolve os problemas. Os problemas permanecem enquanto a mente humana se mover dentro do campo da actividade do «eu»; esta actividade do «eu« tem de criar cada vez mais problemas. Quando observamos, quando nos tornamos muito conscientes dessa actividade do «eu», a mente passa a estar extraordinariamente serena, saudável, sagrada. E, com base nesse silêncio, a nossa existência, em todas as actividades diárias, transforma-se.
Religião é o findar do «eu», e é também acção que nasce nesse silêncio. Uma vida assim é sagrada e cheia de sentido.”        

J.K.

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